segunda-feira, outubro 29, 2001

BOA TEMPESTARDE

Eu me lembro quando era criança e São Paulo ainda era chamada a “terra da garoa”. Não porque ainda garoasse muito que eu não sou tão velho, mas por não ter nenhum substituto melhor.
Hoje, com as tempestades, ou melhor, tempestardes, São Paulo está mais para a terra do dilúvio do que para a garoa.
O medo, na terra da garoa, era ficar resfriado. Por isso, ninguém prevenido saía sem seu guarda-chuva. Hoje, quando guarda-chuva pode virar pára-raio, começo a pensar nos conselhos das mães: “-Filho, não esqueça seu colete salva-vidas, que a meteorologia previu algumas pancadas à tarde.”
Aliás, hoje também não se fala mais em pancadas de chuva: é mais adequado surra.
Fico pensando se, no futuro, ao invés de pedir um carro ao completar 18 anos, os adolescentes que entram na faculdade vão pedir uma lancha. Principalmente se tiverem entrado na USP. Se morasse na periferia, com certeza, ao invés de uma Brasília 78 azul ou de um Corcel II laranja e trabalhar como taxista, eu compraria um caiaque. Ainda poderia fazer o transporte dos alagados.
Na minha infância, a chuva tinha algo de romântico, algo de melancólico e até as metáforas eram interessantes. Minha mãe explicava que a chuva era na verdade a lavagem do céu, promovida por São Pedro, e que os trovões eram o barulho dos móveis sendo arrastados para a lavagem. Hoje, eu não acredito mais nessas fantasias, principalmente quando vejo a quantidade de água que cai e o barulho dos trovões. Começo a pensar que talvez São Pedro já tenha mudado há muito tempo: não agüentou mais as enchentes. E o barulho que faz é dos móveis do novo inquilino do céu sendo arrastados pela enxurrada.
O que me leva a crer que estamos abandonados. E pior: ilhados.
Meu mundo de adulto perdeu boa parte da graça. Nesse mar de lama, que agora é real, é difícil ver a poesia que existia numa tarde verão, quando chegava até a tomar a chuva, para espantar o calor, que não era infernal, mas bem acima do que seria normal na “terra da garoa”.
O calor do nosso verão já superou há muito o aceitável. E a chuva, além de não refrescar, se me arriscar a tomar, posso morrer afogado.
Teve um dia que o pior que acontecia com as chuvas era ficar sem luz ou sem farol. Se naquela época eu não entendia como poderiam ser tão sensíveis à chuva, hoje entendo menos ainda porque até telefone celular fica mudo.
Os tempos mudaram, é verdade. Mas eu sinto saudades. Saudades do tempo que você dizia “Boa tarde” e queria dizer isso mesmo.
Hoje, “Boa tempestarde” se não é agradável, pelo menos é uma forma de manter a sinceridade.

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