quarta-feira, setembro 22, 2004

Cemitério de Vivos

Já dizia Cazuza, em “O Tempo não pára”, “eu vejo um museu de grandes novidades”.
Acredito que o maior mal do mundo atual, a fonte de todos os males, “the source” como se diz em inglês, seja o que o poeta maldito previu há tanto tempo e que eu prefiro chamar de Cemitérios de Vivos.
O homem (e seus ancestrais diretos) passou 99,9% de sua existência lutando para sobreviver a animais, frio, calor, fome, guerras, pestes e inimigos invisíveis. Apenas neste período que representa menos de 0,1% de todo o tempo, que são os últimos 50 anos, o homem conseguiu realmente estender a sua vida aos limites das características naturais do corpo.
Nos outros 99,9% de sua existência, o homem teve tempo suficiente para criar cemitérios cada vez melhores para os mortos. E teve tempo para decantar toda a dor de envelhecer e da perda causada pela morte.
E quem morre em vida, onde enterramos? Que cemitérios construímos para pessoas de todas as idades que morreram para a sociedade produtiva, mas não para vida?
Onde alojamos jovens aposentados, desempregados de todas as idades, analfabetos tecnológicos, adolescentes marginalizados, cidadãos desajustes de comportamento não detectados? Em favelas? Praças e viadutos? Casas de repouso? Quartos dos fundos? Ostracismo? Prédios abandonados?
Existe uma violência que é inerente ao ser humano e a sua baixa evolução. Os grandes crimes, a banalização da violência, a falta de expectativa são, com certeza, decorrentes de uma maldade que existe em toda a raça humana e que, sem controle, produz todas as piores formas de destruição. Este é um problema do qual as diversas religiões ao longo do tempo têm dedicado seus melhores esforços.
Minha preocupação é menos existencialista, menos filosófica, menos transcedental e mais prática. Uma nação de zumbis não será nunca capaz de reagir a qualquer tipo de violência. Um bando de mortos-vivos sempre terá como prioridade encontrar um lugar para enterrar a si mesmo. É engraçado como o cinema já retratou tão bem essa situação. Todos os filmes de mortos que despertam mostram um bando de violentas figuras que conservam seus pertences materiais mas que têm uma só preocupação: encontrar cérebros de vivos para devorar. Nenhum deles quer retomar sua antiga vida, emprego, família, bens. Não buscam reconhecimento da sociedade e nem lutam por cemitérios e tumbas mais dignos. Querem apenas comer cérebros, tantos quantos puderem.
É curioso pensar que um monte de filmes de quinta categoria possa trazer conteúdo tão significativo. Não acredito que seja consciente. Mas o que esses cineastas devem ter percebido é que esse tipo de temor, de virar ou ser devorado por um morto-vivo, esteja arraigado no nosso inconsciente coletivo.
Se essa visão parece absurda, pense no seguinte: qual era o objetivo de Hitler durante seu governo? A princípio, ele buscava apenas tirar a Alemanha do buraco. E depois, quando a economia já estava arrumada, à custa de saques e mortes, o que ele queria ao declarar guerra? Poder? Ele já tinha demais. Sexo? Não me parece ser esse o ponto. Mostrar a supremacia da raça ariana? Pra quem? Como que objetivo? Hitler, como tantos outros ditadores tiranos, era um zumbi cercado por generais, ministros e assessores do mais baixo nível evolutivo. Não que Hitler fosse ingênuo, isento de culpa ou mero joguete. Na verdade, ele, como tantos outros, era um morto-vivo buscando um cérebro. Não é coincidência que todos esses grandes líderes de destruição sejam sempre descritos como pessoas sensíveis, com histórico de problemas familiares, com sérios bloqueios junto ao sexo oposto, na maioria baixinhos e complexados. Esses traços são a fonte de suas qualidades e defeitos. São a origem do carisma pessoal e da capacidade de destruição. Todos matam com a mesma facilidade que fogem. Todos se valeram de fiéis comandados que executaram as ordens que ajudara a proferir.
Na minha visão, esses ditadores são zumbis: possuem corpos e cérebros, são capazes de fazer quase tudo o que uma pessoa comum. Possuem até grande inteligência. Mas, ao contrário de uma pessoa qualquer, não possuem o essencial da vida: alma. Não possuem nem a alma imaterial que caracteriza a vida e nem a alma (“soul” em inglês) que nada mais é do que o sopro divino, o espírito.
Sem alma, vivem suas existências com propósitos sem propósito, com determinação mas sem desejo, com disposição mas sem coragem, com paixão mas sem amor.
A maior diferença entre esses zumbis super-poderosos e os zumbis comuns, que aumentam cada vez mais na sociedade, é uma coisa chamada oportunidade. Pior, a maior diferença entre eles e qualquer pessoa comum, é a capacidade de ir muito além do cemitério.
Triste isso. Mas hoje eu achei esse texto que escrevi há tempos e achei que ele merecia ser postado. Espero que amanhã eu esteja com menos espírito de coveiro...

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